domingo, 3 de fevereiro de 2008

Transcendendo a Bienal

Navegando, indo de um link a outro, me deparei com esse texto do Arnaldo Jabor, publicado originalmente no Caderno 2 (O Estado de S.Paulo), em 12 de dezembro de 2006. Apesar da abordagem partir da última Bienal, o texto vale a viagem e, ao meu ver, extrapola o fato. Vale um debate?

A arte deve ser a exaltação da vida

Ao apagar das luzes, fui ver a Bienal. Já tinha visto e fui de novo. E confirmei a primeira impressão. A sensação é a de ruínas ou de despejos da civilização. Os trabalhos repetem os mesmos códigos e repertórios: terra arrasada, materiais brutos e sujos, desarmonia, assimetria, uma busca deliberada da feiúra, uma clara vergonha de ser "arte", vergonha de provocar sentimentos de prazer. A fruição poética é impedida, como se o prazer fosse uma coisa reacionária, "alienada", ignorando o "mal do mundo", que tem que ser esfregado na cara do espectador para que ele não esqueça o horror social e político que nos assola.
É como se a própria arte fosse uma babaquice a ser evitada. Numa entrevista, uma das teóricas da arte contemporânea, Claire Bishop, diz na Folha : "não defendo uma arte da transcendência. O paradigma romântico foi desmantelado no século 20, porque apresenta a arte como algo universal acima da realidade social e política".
Ou seja, a razão maior da arte , que é justamente esta, está jogada fora, em nome de uma "virada social da arte", uma racionalização criada para substituir a impotência política real.
Fui andando pelo pavilhão do Niemeyer, pensando que o edifício moderno era superior a qualquer panfletinho ali exposto.
Pensei que o império da sordidez mercantil, a ignorância no poder, o fanatismo do terror, a boçalidade da indústria cultural, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além do alcance crítico de qualquer "denúncia" artística.. Não adianta mais "chocar" ninguém. Nada que haja na Bienal nos choca mais que uma explosão da discoteca onde morrem 300 jovens, nada é pior que homens-bomba ou a África ou a lama das favelas e periferias. Nada.
A arte virou um parque temático de deprimidos, um muro de lamentações inúteis.
Hoje, sobrou apenas a psicose como bandeira, a melancolia como "denúncia" de uma vida sem solução e a única crítica do mundo ocidental é feita pelos terroristas islâmicos.
Intelectuais e artistas vivem em pânico, pois seu reinado de sínteses se extinguiu . Os acontecimentos estão incompreensíveis e, no entanto, óbvios demais. Pipocam religiões e irracionalismo autoritário que nos tragam alguma certeza , nem que seja a de chicotes em nossas costas , pedras em nossas cabeças ou guerras sangrentas que nos purifiquem.
Todas as reflexões filosóficas ficaram céticas, descrevendo impossibilidades e becos sem saída. Nunca imaginávamos que o século 21 seria parecido com o século 7º, quando Maomé se declarou o único profeta.
Tropeçando em perigosas "instalações" pensei que a morte da "aura" da arte será mais difícil de se aceitar do que pensávamos. Com a morte da arte, o artista se vê abandonado , e ele mesmo passou a usar a luz da "aura", passou a ter "halo", como uma coroa de espinhos para sua solidão. O artista quer virar obra de arte. E tudo faz para esquecer seu abandono, mesmo que seja expor seus excrementos numa latinha. E vemos que ele não abriu mão da representação, mas cultiva-a ao avesso da beleza, como uma doença favorita. Ele é a representação, ele é a paisagem.
Acontece então que críticos e ensaístas sacanas, mas brilhantes como Brad Holland, por exemplo, vêem essa brecha teórica no ar e começam a destratar a arte em geral, com claros tons reacionários e, no caso do Holland, muito engraçados. Ele se refere ao beco sem saída da arte, que descrevo neste artigo-cabeça. Diz ele: "Tanto o dadaísmo como o surrealismo estão superados. É impossível distinguir esses movimentos estéticos da vida cotidiana". E depois: "não há mais o que transgredir. Tudo foi assimilado. 'Estamos rompendo norma' é, hoje, o slogan do McDonald's". E a piada final, o punch line: "Antigamente , o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje a classe média choca o artista de vanguarda".
Claro que essas piadas não resolvem o impasse. Claro também que os artistas contemporâneos não podem ignorar o horror do mundo e têm de acusar o golpe. Sim,mas mesmo em tempos terríveis, há que se buscar alguma transcendência, sem desistir da criação como esperança e vitalidade.
Depois da Bienal, entrei na exposição Raízes da Forma, no MAM-SP, exibindo os principais trabalhos fundadores do Movimento Concreto dos anos 50 em São Paulo.
E, aqui, devo fazer uma auto-crítica: sempre impliquei com os concretos, desde minha adolescência no Rio, talvez influenciado pela cisão entre cariocas e paulistas sobre arte, com a polêmica entre concretos e neo-concretos do Rio, liderados por Ferreira Gullar. Mas domingo, dentro do MAM, tive uma sensação de alívio, de paz.
Diante das obras lindas de Ivan Serpa (ele , um precursor livre), de Lígia Clark, de Oiticica ( que me irritava desde as brigas com o Cinema Novo) , Geraldo de Barros, Aluízio Carvão, Alexandre Wollner e outros, diante das formas puras, reencontrei-me com a transcendência , sim , ali, no concreto. Sim, a arte que nos pacifica, eleva, nos silencia. E tive a certeza inapelável: a forma é tudo. Na forma está a verdade muito mais que na gritaria de denúncias e conteúdos desesperados como panfletos. No silêncio da forma a beleza nos espera, a esperança de sentido nos aplaca. Na beleza das formas organizadas, no desenho da razão está um sentido misterioso, mas imperioso para a vida. Lembrei-me então de uma frase de Stravinski: "A obra de arte deve ser exultante". E entendi que desistir da beleza é uma confissão de derrota, é legitimar os inimigos.
E só então 50 anos depois apaixonei-me pelos concretos de São Paulo, liderados pelos irmãos Campos e Pignatari , eu que já os tinha chamado de "mata-mosquitos da cultura", no passado. Desculpem-me hoje 50 anos depois.

3 comentários:

Jeferson Thomazelli disse...

A arte é assim mesmo. Quanto mais bizarrices e coisas inúteis vemos mais aguçada fica a nossa dúvida e nos perguntamos "Que droga é essa?"
Isso não significa que a arte foi derrotada pelo discurso panfletário mas sim que ainda existe muita coisa pra ser discutida e apreciada.
Errar? Podemos errar. Temos esse direito. Pelo menos tentamos.
O texto é pertinente mas não devemos colocar todos no mesmo saco, sempre existe uma luz no fim do túnel.
Ainda bem que o Jarbor percebeu que também "errou". Quem sabe não mude de opinião mais pra frente?
A arte tem dessas coisas...

Anônimo disse...

Hei, Jef, bom te ver por aqui! Li esse texto do Jabor como uma espécie de desabafo de um sentimento que muita gente compartilha, eu mesmo às vezes, ao percorrer um espaço expositivo como o da Bienal, mas certamente não dá para generalizar.
Agora veja que ele toca num ponto que é o da arte da transcendência que, segundo Claire Bishop citada por ele, é apenas um paradigma romântico já desmantelado no século passado. E, por ironia, é na "frieza" da linha e das composições concretas que Jabor vai se reencontrar com a essência da arte. Apenas um acesso de saudosismo ou uma contatação de uma realidade imposta por um mercado sedento por novidades? Perguntas, apenas perguntas...

Marcus Hide disse...

São Paulo falta: do horizonte, de espaços vazios, da visão geral, o silêncio, do ar sem partículas.
Quando fui ao sul, senti uma "fobia" de excesso: de horizonte, de céu, de estradas retas, planos e com o silêncio.
Talvez a Bienal citado pelo Jabor seja compreendida daqui a 50 anos. Duchamp não queria, hoje é uma referência como artista do movimento...o mercado o elegeu.